Fernando Magalhães Rangel
Cheguei a um ponto da vida que o que importa é ser feliz, feliz de sair por aí, sentindo prazer de estar vivo. Como eu posso ser feliz? Bem, isso é outro ponto... Se eu me vejo como poucos se vêem, ou se sou feliz de forma pouco usual, não importa.
Passei muito tempo preocupado com o processo. Hoje, me importa muito mais o resultado. Hoje, eu tenho certeza de que não quero mais enfim ser de outra forma. Chega de tentar ser o que não posso ser através das mandalas psico farmacêuticas ou das lobotomias de comportamento. Sou feliz assim e sigo adiante.
Vou me libertando da culpa que colocaram aqui dentro e quando o bicho pegar, eu sei que vou sobreviver. Vai bicho louco! Vai cavalo solto. Me leva que eu vou contigo e quando cansares, estarei forte e diferente de quando tudo começou. Eu posso correr por vales e por serras atrás do pote de ouro, porque eu descobri que o meu desejo é o desejo de quem se libertou dos velhos julgamentos.
Desde os morais até dos CIDs de quem vê em mim uma doença. Eu sou uma continuação de todos nós, porém, não sou diferente. O mesmo sangue que corre aqui dentro, corre na veia de qualquer outro. Sou o que você não pode realizar ou não quis. Sou aquilo que ninguém queria ser, porque tinha medo. Enfim, sou assim e ponto. Como é bom estar aqui onde estou e bom não é melhor ou pior. Bom só depende de mim, melhor ou pior sempre depende do outro. Eu não sei se sou assim ou assado, porque cheguei a um ponto no qual não me comparo mais. Eu sou feliz, sabe?! Feliz e isso é o que me importa.
Há algum tempo, me chama atenção que as questões relativas aos chamados problemas de alma ou males psiquiátricos ou estados perturbados de consciência, sejam quase exclusivamente um domínio de poder e de conhecimento da psiquiatria e da psicologia. Ao se excluir pacientes/experienciadores dessa equação, uma perda acontece automaticamente, pois nós poderíamos contribuir em muita coisa. No meu caso específico, apresento sintomas desde a adolescência, desde há mais de 40 anos. Enfrentei obstáculos ao longo da vida, pessoais e profissionais e hoje, se não estou numa situação precária, como muitos de nós, é porque tive suporte e porque me dei conta do perigo que corria e corro. Porém, eu aprendi muitas coisas com a minha doença.
A primeira delas é que na origem, ela é uma doença sim, mas pode se transformar em outras coisas. A partir dela, posso ser alguém que se vê sempre em movimento, sou um ser que pouco descanso tem, pois preciso estar atento a mim e mudando para não cair nas velhas armadilhas. Constato algo que para mim é fundamental, isto é, eu não tenho cura, tenho vontade de me curar. Meu repouso é o movimento. Pode parecer pouco, mas descobrir isso me ajudou muito, me ajudou a criar anteparos contra as crises. Crise é a perda de controle, quando tudo dá errado ou certo... todavia, como num cabo de guerra, eu luto para não chegar até lá.
A medicação é um fantasma que ronda por aí, não é mesmo? Pois, em minha opinião, ruim com ela, pior sem ela. Eu sou uma história viva dos fármacos e dou risadas. Nos últimos 30 anos, eu passei por tantos psiquiatras que eu poderia fazer uma lista deles. A sensação que tenho é que os remédios criam uma divisão, uma seção entre a mente e o corpo. Talvez, criem, um antagonismo entre ambos, como se fossem inimigos figadais. Para mim, antidepressivos, moderadores de humor, antipsicóticos etc. são a materialização do que Rene Descartes imaginou para o ser humano, ou seja, os sentidos são desprezíveis e a razão deve nos comandar. Porém, sem ambos – os psiquiatras e suas pílulas maravilhosas, eu não estaria aqui. Com certeza, não estaria! Eu aprendi que medicação é bem-vinda, sempre!
Então, surge outro imbróglio da nossa vida – a análise... Meu Deus, aí a coisa se complica numa proporção geométrica. Eu me lembro de quando passava por uma crise terrível e que foi resultar na minha última internação, e fui encaminhado a uma analista. Durante a primeira e última sessão, a profissional em questão, médica e psicanalista, me tratou como se eu fosse um perfeito idiota debilitado por uma dependência química e, estranhamente, expelia gases. Ela, não eu... O fato se deu há alguns anos, mas eu sempre volto àquela sessão com um misto de ressentimento e espanto. Como diz minha atual analista, o perdão é o melhor remédio. É o que eu venho fazendo, ou tentado.
Penso muito qual seria a relação ideal entre paciente e analista. Eu já passei por freudianos, jungianos, cognitiva-comportamental e não sei mais quantos tipos. Hoje em dia, faço terapia transpessoal, mas o fato é que tenho uma relação de amizade com a analista. Ver minha analista fora do consultório foi uma experiência e tanto. Fazemos teatro juntos. Ela faz exercícios intensos e cheios de energia. Estamos montando um quadro, um esquete, ou seja, ela atua e eu escrevo o roteiro para ela e minha mulher. Cheguei a sonhar com a cena, estávamos numa cidade e éramos muito mais jovens, eu usava uma bolsa tiracolo e ela dançava num salão de um bar. Enfim, foi um sonho e não a cena. Entretanto, tenho aprendido bastante e talvez o principal seja que o “amor” não é tão pecaminoso numa relação terapêutica.
Minha terapeuta atual me ensinou que perdoar significa amar e amar não é para amadores. Jean Jacques Rousseau tem uma definição sobre a figura do filósofo que eu acho genial, para ele, o filósofo é o sujeito que chora a noite pela humanidade, porém, joga de manhã água suja no mendigo que pede esmolas debaixo da janela. Pois é, amar genericamente a humanidade é fácil, o difícil é amar o seu vizinho que precisa de apoio e auxílio. Acho que o mesmo vale pelo perdão, dizer que perdoou não requer esforços maiores. Contudo, o efetivo perdão através de atos e atitudes mentais positivas requer uma mobilização pessoal que nos transforma. Não sei se nós nos acostumamos com o ódio... Eu mal falo com meus irmãos desde a morte de meus pais e sinto que devo romper esse silêncio. O maior beneficiado, em última instância, serei eu mesmo, me verei livre de tantas mágoas. Entretanto, como começar?
Então, eu comecei a desenvolver uma ideia minha de Deus. A partir de uma noção de Santo Agostinho que o pecado é se afastar de si mesmo, eu procurei Deus em mim, nos meus desejos, medos, paixões. Dei-me conta de que Deus é o processo, é a vida que se vive, é o caminhar rumo ao fim de uma jornada. Se o fim for de fato o fim e minha consciência deixar de existir, ao menos, deixo de me preocupar com boletos bancários... Porém, se o fim for o retorno, que eu siga adiante. Mas, olhar para mim e me descobrir não dependem do que virá no futuro, depende do presente. O agora é o meu tempo e o corpo é o meu templo. Minha alma é a consciência do que sou, o esforço do equilíbrio e movimento.
Foi a partir de Deus que pude ver que autogerir minha particularidade / doença / subjetividade é possível. AUTOGESTÃO quer dizer que o maior responsável por mim sou eu mesmo e que quando eu não puder me gerir, devo pedir ajuda. Descobri através de Deus que não posso me delegar a terceiros, a não ser que eu precise. Continuo a ter crises, maiores e menores, mais menores do que maiores e, por isso, criei o hábito de me vigiar. Cometo ainda o pecado de me deixar de olhar, confesso! Mas, tenho estado atento e tenho me aproximado de pessoas que entendam e me aceitem como eu sou.
Escrevo profissionalmente desde os Anos 80. Trabalhei em emissoras de TV, publiquei livros, montei peças de teatro e um mundo de coisas. Recentemente, tenho lido e escrito também como forma de me curar. A Literatura pode ser um forte instrumento de se descobrir luzes e sombras e milhares tons de cinza. Ler, em particular, é entrar em contato com outra alma, muitas vezes, tão ou mais em dor do que a nossa. Podemos aprender através da experiência de quem nos antecedeu, não podemos? E aprender sob a lente da estética é um passo mágico para se melhorar. Pois a Literatura, assim como a Arte em geral, requer foco, distanciamento, cálculo e outras habilidades que podem ser remédios imateriais para nosso espírito.